terça-feira, 30 de outubro de 2012

Poesia em flor

Poesia em flor

Sem mais nem menos, o arbusto defronte minha janela floriu-se por completo. Espocou em flores cabeludas. A uma impressão inicial, parece até ter perdido todas as folhas. Pois quase não se admite mais verde nas órbitas de tronco e galhos.
Fica arredondada a altura do arbusto. Os pintassilgos se embrenham sob essa abóbada. E deliram num canto gargalhado. Canto de quem pousa no coração da catedral da natureza. Onde as telhas são pétalas arroxeadas. E do céu escorre uma beleza doce.
Nesse período o arbusto cresce. Senão em tamanho, certamente em cor. As flores de pernas abertas. Os estames arrebitados. O sexo das flores.
Os pintassilgos vêm e voltam. Sacodem o arbusto. Não sei se pelejam. Não se contam alegre piada. Não aprendi a entendê-los. É que em minha escola não há palmeiras onde cantem pintassilgos.
Começa a soprar o vento. As flores ondulam. Navegam em ondas evaporadas. Marcando sinais com seus movimentos. Acenando com seus lábios envernizados com néctar. Amarrados às raízes do arbusto por fios de clorofila.
Planta acesa. Kilowatts de flor; ilumina e atrai minha cegueira.
Mal posso esperar pela noite. Mal posso esperar pela insônia. Um arbusto florido não se apaga. Um arbusto florido é poesia; poesia em flor.

Rafael Alvarenga
Resende, 25 de outubro de 2012


domingo, 28 de outubro de 2012

Reencontro


Reencontro

Quanto tempo já faz. Lembro-me de segurá-la na mão. Não posso esquecer também do dia quando juntos saímos a lhe procurar um lugar. Claro, ela vinha crescendo. E nosso caso, em algum momento havia mesmo de terminar. Não foi fácil para mim. Eu era impávido. Contudo, por sorte, naquele dia choveu. E as lágrimas que me amoleciam esconderam-se entre os pingos do céu.

Depois, naturalmente, ela ganhou corpo. Chamou a atenção de passantes e cantantes. Sabia que alguns se aninhavam em seus braços firmes. Ao vento ela esvoaçava-se. Mas eu evitava passar próximo a seu perfume. Não sei o que me viria à cabeça caso encontrasse alguém trepado nela. Ou desrespeitosamente urinando a seus olhos.

Nunca lhe esquecera. Por isso, em virtude de minhas contas, sabia de suas épocas. E pelo tempo margeava-lhe a maturescência. E eu que mesmo apaixonado como sempre fora, nunca tivera a oportunidade de vê-la nua em flor. Paixão de menino talvez. Entretanto eu já era homem.

Resolvi procurá-la. Ela não mudara de endereço. Meu coração batia forte. Fiz o caminho mais longo. Talvez a fim de cansar-me a mim mesmo.

Quando cheguei ela estava só. Linda. Rechonchuda de frutos vermelhos. E de braços abertos como se me reconhecesse. Minha aceroleira! Quanto tempo desde o dia em que lhe plantei!

 

Rafael Alvarenga
Resende, 17 de outubro de 2012

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Por um pedaço de Pessoa

Por um pedaço de Pessoa

Ele lia um bruto volume de história do pensamento. Era mestre. Sentava-se em cátedra. E sua produção intelectual acompanhava códigos austeros. Exigia um silêncio sem esperança de vida. Bem como coibia sorrisos. É que aprender haveria sempre de doer.
As páginas que custosamente revolvia tinham o fino da seda. Sobre elas a carga de uma filosofia que apenas pudera ser abstrata. Fosse concreta e nenhum de nós a carregaríamos na cabeça ou nas mãos tal o chumbo sentido.
Chegou a menina. Poucos anos de adolescência. Toda atrevimento e distração. Sentou-se em frente dEle. Em mãos um Fernando Pessoa. Lia com os cantos da boca fundeados em sorrisos. Balançava com as rimas. Porém, ás vezes, punha os pés no chão tal a altura do balançar de um poema.
Após, balbuciava uma estrofe cantada ou exclamada! Ele não penetrava mais nas páginas de chumbo do livro de seda. O pensamento da história desligava seus neurotransmissores.
Invocada ela sacou o telefone. Ali era terminantemente proibido o uso desses aparelhos. Sorria e seus dentes ganhavam cada vez mais em tamanho. Digitava e olhava para o livro. Copiava a poesia, ele viu. Ela pôs o pé sobre a cadeira almofadada da biblioteca. Abusada! Em plena adolescência da vida lendo Fernando Pessoa e rindo e pisando na cátedra.
Ele não disse nada. Que maravilha devia ser receber, no meio da manhã, um pedaço de poesia do Pessoa. Ele não disse nada.

Rafael Alvarenga
Resende, 17 de outubro de 2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O pombo e o bêbado



O pombo e o bêbado
As lojas todas fechadas. E a rua em chão de areia. Em virtude do início das obras ditas de melhorias. O pombo lá, cosendo ninho com as unhas. Juntando grão de areia como fossem paetês. Mas no chão não se põem ovos. As corujas é que se aproveitam dos comentários sobre o exotismo místico de seu corpo. Acalentam seus embriões em buracos no chão. E fingem amaldiçoar quem se aproxima.
O pombo insistente. Acorujado no chão. Em frente à cortina de ferro arriada de uma loja de sapatos. Amanhã bem cedo um quarenta e dois bico largo lhe chutará a cloaca. Mocacins marrons morderão a areia seca. Leves sandálias femininas de números pequenos e delicados lhes pisariam os ovos.
Talvez estivesse à beira da morte. Por isso pretendesse procriar a qualquer custo. E se os filhotes não vingassem que teria a ver com isso? Não podia era morrer antes mesmo de reproduzir. Pois era essa a principal morte: não deixar vida.
Veio um bêbado. Entrou pela rua. No desencontro das pernas deu-se com o pombo. Como sentia-se no direito de qualquer coisa, até de ser feliz sem motivo, perguntou a ave o que fazia ali. Não obteve resposta. Entretanto continuou perguntando e respondendo. Com uma voz enrolada. Uma preguiça pesada. Afundou-se na areia. E roncou tudo que o pombo não arrulhava.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 15 de outubro de 2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Desjejum e pássaros


Desjejum e pássaros

Escrevo sobre os farelos do desjejum. Ajeito uma espécie de canto. O qual desejo que assobie como poesia. Não uso caneta ou lápis. Trabalho com teclas. E lanço mão de três dedos em cada ponta de braço. É que sou meio apassarinhado.
Os pássaros estão à porta. Reclamam sem decoro essas cambaxirras! Choram lágrimas de crocodilo esses sabiás! Quem os ouve crê que lhes cometi alguma violência. Os beija-flores deitam os pés no chão. Entretanto, de forma alguma desligam as hélices. Seu corpo se move e muda de cor e forma. São hologramas alados. Para cada fração de movimento novidades relativas à cor. Em cada pena cabe o inteiro de um desenho exclusivo. Mas o ângulo necessário para vê-lo é obtuso. Ali está o segredo do bicho. O beija-flor gira em alta rotação. E na roleta russa de sua própria vida duvida de quem seja capaz de sentir a existência numa fração de segundos.
Tirei a toalha da mesa. Dobrei-a como se carregasse uma trouxa. Pisei no chão caraquento da calçada. Esperei o vento. Então soltei duas das pontas do tecido e esvoacei minha bandeira branca. Os farelos do desjejum mergulharam no frio sem sol da manhã. A infantaria dos pássaros avançou muda. Mesmo depois de tantas manhãs não me confiavam a ponto de crer-me amigo; de crer-me sempre fiel e apreciador.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 13 de outubro de 2012

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Caroço de laranja


Caroço de laranja

Pela janela cuspo caroços de laranja. Vão a terra umedecidos pela saliva membranosa. Não é apropriado pô-los no lixo. Pois, são vida, não lixo. São outras laranjeiras em flores e frutos.

Entretanto aqui se juntaram algumas casas. E como para o consenso vila é coisa antiquada chamam de condomínio. Esse rapaz de azul é o jardineiro. Segue as normas. É bom funcionário. Poda tudo. Varre tudo. Limpa tudo. Antes que eu acorde ele já retirou os caroços de laranja do canteiro logo abaixo de minha janela. Não o pergunto absolutamente nada sobre isso. Sei; o condomínio não permite aos moradores possuir uma laranjeira à janela. Afinal, argumentaria o síndico, se cada morador resolvesse plantar uma árvore sob a janela como ficaríamos? Aqui laranjeira, ali aceroleira, acolá pitangueira. Perder-se-ia o padrão estético do condomínio.

Em minhas mãos vai, mordida a mordida, diminuindo-se as frações da laranja. Pelas nervuras vegetais escorrem lágrimas amarelas. Todavia não adianta. Não é a graça das folhas secas na calçada; não são as flores perfumadas; não são os pássaros cantando em algazarra pela manhã; não são as sombras ou as frutas que lhes incomoda. É que as regras não permitem que se mude o padrão estético do condomínio.

Resta um último caroço. Cuspo-o na palma da mão. Em seguida lanço-o. Talvez, para além dos muros, haja permissão estética para brotar.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 08 de outubro de 2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Vida d'outro


Vida d’outro


Da vida que tem, cada um é quem devia saber. Mas não sabe. É que a vida alheia é mais fácil. Não de ser vivida, sim de ser sabida. Aí é tanto formato de opinião, com tantos lados e ângulos que a geometria dos poliedros nem espia. Então a ciência passa longe. E é a gente toda quem vai pensando saber.
E a vida tem real; tem ilusão. De minha janela vejo o homem que trabalha na torre desativada. Antes cuspia fumaça. Dando sinal da vitalidade da fábrica. Agora o homem pinta de vermelho cada tijolinho morto. É a vida dele. Vai subindo pela corda. Um balde de esmalte à mão. Trata a chaminé como a manicure da unha. É a vida dele. Ele sobe e desce procurando defeito no obelisco circular. Todo dia. É essa sua vida. E os outros olham e falam. Falam de tudo. Porque é exótica, perigosa, insignificante. Veem de tudo. O salário miserável, o esforço brutal, a iminência da queda, a maravilha da vista privilegiada, a adrenalina borbulhante da altura, a coragem altiva, o suor luminoso.
Da vida que tem, cada um é quem devia saber. Mas não sabe. É que a vida alheia é mais fácil. Não de ser vivida, sim de ser sabida. Quanta cor de opinião para esses ouvidos monocromáticos. E ninguém fala branco; ninguém fala preto.


Rafael Alvarenga
Resende, 08 de outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Cão vagabundo


Cão vagabundo

Já crescida a manhã corria pelas ruas. Com um calor grosso. Um sol seco e poeirento.
Amarelo e transeunte era o cão. As unhas compridas e encardidas. O focinho velho. Tão metido já estivera em cercas e lixeiras. Seu uivo agudo é que era frio. Porque tudo quanto é agudo é frio.
Nos olhos aguados uma profundidade oceânica. No olhar escuro um vazio abissal. Desses onde até duvidamos haver alguma coisa viva, no entanto onde não nos atrevemos a mergulhar. Suportavam seus quartos as duas pilastras finas das pernas traseiras.
Às tantas da manhã correu um vento. Até então estava escondido no silêncio das folhas dos abricós. Antes que escorregasse no ar o cão deu inicio ao trote vagabundo.
As orelhas dobradas em si mesmas. Escondendo o labirinto por onde só o som conhece entrada e saída. A cauda enforcada. Sem função vital. Pronta a ser enterrada e esquecida.
E o cão, já disse, vagabundo. Leva sua tristeza magra e incorporada. Esconde na língua arranhada o sal do seu suor. Procura entre o aqui e o acolá a doçura de uma sobra, o refrescar de uma poça.
O amanhã lhe está sempre muito próximo. Entretanto como não tem pretensão de prevê-lo, vaga pelo agora. E abunda-se do que tiver.

Rafael Alvarenga
Resende, 06 de setembro de 2012

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Casa Fechada


Casa fechada

Fechei a porta e as cortinas. Ambas estão alagadas por uma cor semelhante a das paredes. Sinto-me legitimamente fechado. Tudo é constante aos olhos.

O ventilador dorme com os braços abertos. Esparrama-se de cabeça para baixo. Eletrodoméstico da espécie dos morcegos. E as prateleiras estacionam-se como vagões num pátio de manobras. Sua carga um bricabraque erguido por cantoneiras negras e insensíveis. Nosso calendário marca dia trinta. É daqueles cujas folhas, com o passar dos dias, giram sobre uma espiral para esconderem-se no atrás. Cada dia uma folha. Girando sobre seu próprio eixo como faz a terra. Amanhã serão duas folhas girando. Esse mês, dia trinta e um não nascerá. O que é motivo suficiente para me fazer supersticioso.

Há dois pregos enfiados na parede. Suas cabeças são negras e relutantes. Seus corpos fossilizados na argamassa anabolizada. Se tiverem alguma vida, direi que eles passam ali uma vida inteira.

Abraça o interruptor uma nuvem de sujeira de mãos. Do outro lado a marca de um armário que já viveu aqui. E traços a lápis de uma caligrafia iniciante. A antiguidade da casa viu crianças; sabe de segredos. E nunca esteve tão silenciosa. Porque a noite eu fico sozinho. E cubro as janelas com as cortinas. Fica uma impressão de que a casa dorme. Assim como dorme um carro quando coberto com uma capa que lhe garante formato.

A diferença é que a capa da casa é quem mora dentro dela.

 

Rafael Alvarenga

Niterói, 30 de setembro de 2012