quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Presente de aniversário

Presente de aniversário

Dali a dias a criança faria anos. A tia lhe comprara o presente com antecedência. E eu, o tio, gostara do agrado. Só não entendia como faríamos com o embrulho. Não que o sobrinho nos viesse vasculhar o baú, dando de cara com o que seria seu. Afinal, julgava eu, presentearíamos com antecedência. Demasiada antecedência.
Entretanto a tia não planejava assim. Disse-me que manteria o presente ali, na prateleira, até a data festiva. De imediato nada contrapus. Depois vi o brinquedo decompor-se em qualquer coisa sem alegria; como uma tábua de passar roupa; um castiçal; um escorredor de pratos.
O presente no alto da prateleira. Com medo de pular. Como o pássaro jovem que ainda não sabe voar. Tive pena. Pensei em contar tudo à criança. Inflamar-lhe. Um presente não se guarda por esperar. Um presente se compra e se dá.
Quando encontramos a criança balbuciei mudo sobre o conteúdo embrulhado em papel colorido. E a cada vez que a tia fazia menção a uma nova frase, uma nova palavra que fosse, eu arreganhava o rosto num sorriso prematuro. Mas, falava-se de tudo menos do presente.
E a criança a última a saber. A única a não saber. No descansar do quarto, depois do primeiro silêncio, antes dos sonhos falarem, supliquei: Pelo amor de Deus, dê logo esse presente! Desabafada ela adoçou: Sim. Amanhã mesmo. Nem eu aguento mais esperar.

Rafael Alvarenga
Niterói, 04 de novembro de 2012

sábado, 3 de novembro de 2012

Loucura congelada


Loucura congelada


Quanto mais nos trancam, tanto mais congelamos nossa loucura. Dentro de nós um Ártico oceano. Fora de nós um Antártico continente. E é inverno. Mas existe vida. Embora imobilizada sob os braços cristalinos do gelo.

Posso fechar os olhos. Afinal abri-los para paredes nuas e depiladas em nada excita. Bem poderia passar por aqui uma barata. Tal aquela que em tão profunda alucinação empurrou Clarice Lispector. Entretanto não há outro excesso senão o do asseamento.

Falta-me a mesa e a cadeira onde possa colocar-me e trabalhar. Que inveja dos homens que viveram em um quarto. E nele levantaram a tenda de uma casa inteira. Lembro-me do quadro onde Van Gogh representou seu quarto. Fosse o pintou ainda vivo e eu jamais lhe proporia por meu quarto num quadro. Pois tudo está fora dele. Até mesmo minha tristeza.

Falta-me coragem para declarar a dor que sinto diariamente nas costas. Mesmo assim, sorrindo, bato às portas apresentando-me esse escritor. Mas o chefe, sempre em reunião, não me pode receber. Trancam-me. E eu mal posso mostrar a crônica que acabei de escrever num guardanapo. Contenho-me. Agradeço. Sorrio. Congelo minha loucura.

Entra um vento por debaixo da porta. Não derruba nada. Por isso sobra. Depois morre duro. Igual. E inexpressivo tal qual a loucura que ainda não degelou.

 

 

Rafael Alvarenga

Niterói, 02 de novembro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Lá embaixo!


Certa liberdade


Certa liberdade

Vinham em três. À porta da escola dissolveu-se o grupo. As crianças penetraram por uma abertura na grade. Pularam para o interior dos pátios e salas. Foram zunindo e gritando. Numa cavalgada forte.

Em seguida correu o ferrolho. As chaves uniram-se a um canto da argola; balançando junto ao caminhar do inspetor.

Cá fora, a mãe. Aliviada. Sentou-se ao banco da praça. Sacou um cigarro amassado e acendeu-o. Fez pensando no que iria fazer. Tinha as próximas quatro horas da tarde. E devia fazer qualquer coisa, desde que esquecesse completamente as crianças.

Naquele momento deixava de ter filhos. Toda responsabilidade ficava agora com aqueles que estavam do lado de dentro das grades, ajuizava.

Levantou-se e caminhou. Quando se achou longe suficiente pensou em tomar um ônibus e ir à praia. Ou almoçar em um restaurante caro. Lembrou-se do cinema. Quanto tempo não ia ao cinema. Pensou também em procurar Amanda, sua prima, e declarar o quanto vivia bem, o quanto estava satisfeita com a vida. Poderia ler numa paz sensual um romance picante. Poderia suspirar pelo Passeio Público e paquerar. Porque agora era uma mulher solteira e sem filhos.

Poderia tudo que quisesse, mas tinha apenas quatro horas para escolher qual tudo faria.

As crianças estavam seguras. Ao longe se ouviam seus gritos escandalosos.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 31 de outubro de 2012