Mundo cedo
Gosto de acordar antes. Quando o mundo ainda parece
abandonado. Pelas ruas o silêncio. Pelas casas a lembrança de quem ali sei que
já viveu. Nesse cedo o rio contradiz a razão que não lhe pertence. De modo que permanece
parado. Dormindo sobre seu leito macio e lodoso, tantas foram as folhas de
mangueira, ipê, pau mulato, Jamelão e quaresmeira que juntas lhe fizeram
colchão e travesseiros.
Nessa hora quem vai trabalhar pisa macio. Tão
discreto segue seu caminho que até as mãos esconde na boca do bolso. Os animais
que se recolhem chegam cansados. E aqueles que despertam não encontram, de
pronto, muito o que falar. Os pássaros
não contam. Os pássaros cantam, não falam.
É um momento de troca de turnos. O porteiro ansioso
por deixar a guarita, o taxista na necessidade de parar, o médico ávido por
tirar o jaleco branco que ele já entende sujo, D. Maria atenta a hora, deve
trocar a roupa de casa pela roupa da missa.
Entretanto as trocas acontecem sem estardalhaço. O
mundo nesse muito cedo parece ter escapado de qualquer catástrofe. Sobreviveu
vazio. Os carros estacionados, os portões fechados. Há apenas rastros frescos.
Deixados por uma espécie que talvez tenha reinado.
O mundo vazio dura pouco. Não podemos perder a hora
de apreciá-lo. Agora já vejo cruzando a ponte um ônibus. Na esquina uma
bicicleta, na janela uma abertura, no calçamento o ruído de um sapato.
O rio volta a descer. O mundo a encher-se. Posso
dormir. Posso fechar os olhos.
Rafael Alvarenga
Resende, 10 de novembro de 2013