sexta-feira, 28 de setembro de 2012

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Chão de apartamento

Hoje meu chão é de apartamento. E essa noite é intimamente preta. Ao redor, aqui e acolá, alguma janela em luz. Uma luminância esvaecida. Porosa. Derretendo-se na inclinação do facho. Nada se desnuda.

As janelas assentam-se na alvenaria infinita da pedra só que é a escuridão. Essas janelas, pobres gárgulas desamparadas; fazem bem em tentar dormir, já que é noite, já que tudo ignoram.

No meu chão de apartamento as janelas de vidro são tão dilatadas que poderia referir-me a elas como paredes de vidro. E mais que isso, poderia me aliviar pensando que se estivesse a viver no chão mesmo não usufruiria do exotismo de paredes de vidro.

Aos poucos vou consolando-me. É que pisar longe do chão me dá a sensação de animal na jaula.

Acaba de nascer mais uma janela. Embora eu tenha certeza que todos estejam morrendo enquanto dormem. Tem uma luz azul. Mais prolongada. Se ela apresentasse fôlego para correr um pouco mais faria curvas. Entretanto não está bem alimentada. Por isso fica ali, no peitoral de mármore, mordiscando migalhas de escuridão. Eu não a incomodo. Não tenho interesse algum em ser iluminado.

Quero apenas sentar na noite. E dar a luz a crônica do dia seguinte.

 

Rafael Alvarenga

Niterói, 28 de setembro de 2012

Solidão

A solidão não tem garganta. Nem cordas vocais. A solidão não fala. A solidão não tem dedos nem unhas. A solidão não me agarra. A solidão não tem pernas e pés. A solidão não anda ao meu lado. A solidão não tem ovário. Nem espermatozoides. A solidão não se reproduz.
A solidão não tem proteínas e vitaminas. Nem lipídeos e sais minerais. A solidão não alimenta. A solidão não tem nervo ciático. Nem medula espinhal. A solidão não sente. A solidão não tem evaporação. Nem formação de nuvens. A solidão não se precipita.
A solidão não tem giárdias. Nem lombrigas ou bactérias. A solidão não adoece. A solidão não tem adição. Nem multiplicação. A solidão não numera. A solidão não tem dias. Nem horas ou instantes. A solidão não tem tempo.
A solidão não é uma coisa. Nem tem uma coisa. A solidão é o nome do que é espaço vazio. Por isso, é através da solidão que vemos tudo que passa. É através da solidão que inventamos tudo que pode passar. Porque quando não há solidão, há algo. Uma existência a nos distrair de todo o resto.
Mas a solidão não é exatamente fonte.  A solidão não tem chafariz. Nem anjos e harpas. A solidão não tem coração.

Rafael Alvarenga
Resende, 26 de setembro de 2012

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Meu vagar

Nessas madrugadas saio para dentro de mim. Vagueio por estradas de chão arterial. Piso nesse vermelho batido. Acendo uma poeira ácida. São horas cheias da madrugada. Dos campanários de minhas torres torcidas soa certa dor. Vou à margem de duodenos compridos. Hesito em cruzamentos nevrálgicos. Não há sinal. Dentro de mim é uma cidade planejada. Obra de um futuro antigo. Criação simbiótica de movimentos.
Avisto viadutos, pontes, tuneis. E a fluidez de mim me apavora. Aqui está tudo. Os fantasmas vagueiam. E a santificação tem cor e forma.
Vou aos becos cheios de pés descalços. Há vapores em alguma junta. E linhas de todo tipo. Talvez nenhuma delas seja retilínea. Tenho trópicos dentro de mim. Meu ocidente emagreceu. Meu oriente enegreceu. O sol não está no meu umbigo. Dentro de mim não tenho hora. Ando por minhas periferias descarnadas e pelancudas. Meu nariz entende os verdes biliáticos. Meus olhos tateiam a molenguice de meus bairros de trabalhadores.
Chego a uma praça. Ampla. Com uma bela fonte de água suja. Nela lavo minhas orelhas. E tudo vai ficando cristalino e subnutrido. Logo a frente um bem feito sobrado. Dentro dele um coração bate. A janela está aberta. A toalha branca esvoaçante pode ser o sinal. Ao lado a aorta. Manjericão e estômago vazio.
Pego uma ventania pulmonar. Chovem goles d’água. Procuro abrigo no quente de uma axila. Sou andejo em mim, por dentro e por fora. Encosto e cochilo o sono d’agora.

Rafael Alvarenga
Resende, 25 de setembro de 2012    

terça-feira, 25 de setembro de 2012

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Pelo asfalto

Esse asfalto é como uma língua comprida. Ligando aqui e lá. Sabe de quem vai e de quem vem. Mas como endureceu de baixo de nosso passar cristaliza alheios segredos. Mas tudo tem um ponto de amolecimento. E há uma quentura de sol que empasta o negrume do piche. Ficam, em marcas, os redondos dos pneus. E suas dentições tão variadas. Lembram-me marcas de mordidas de predadores. Pois desfazem o couro da terra.
As rodas empurram a terra para trás a fim de seguirem para frente. No fim todos andam cada qual para onde vai.
Não há controvérsias, a velhice chega a tudo. O tempo é malha fina, diariamente remendada. Ao tempo em que não pode mais morder o chão o pneu é encostado a um muro sujo. É uma gengiva negra e banguela. Seus dentes todos apagados. E a nevralgia dos arames que malham o interior da borracha a saltar brilhante.
Mais um pouco adiante chove. O asfalto não tem poro. É uma crosta enrugada. Nada afeita a penetrações liquescentes. E por mais que o céu chore por horas a fio o asfalto não arreda. A água empoça. E depois escorre até uma vala.
No corpo negro do asfalto linhas e listras; traços e olhos de gato alumiando à noite a boca da curva. Abaixo os faróis e as papilas concretadas do asfalto sentem o gosto da luz.

Rafael alvarenga
Resende, 24 de setembro de 2012 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

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Três casas

Sobraram três casas. E como de propósito, nelas tudo era de antes. Nas garagens fuscas; nos telhados antenas como espinhas de peixes; no entorno muros baixos; nos fundos um quintal cheio de guardados; na varanda uma samambaia despenteada.
De resto os prédios. Arrogantes e abusados. Dando as costas largas e lisas. Olhando o mar por cima. Mas desprovidos de uma cabeleira de telhas. Qual pudesse ser alisada pela brisa marinha. As casas riam. Pois os prédios moravam na beira mar, entretanto viviam quadrados. Usavam terno e gravata de concreto. E que adiantava sua altura grande se mesmo o gavião solitário que planava esbelto vinha pousar no telhado baixo e descaído das casas.
O problema era o quinhão de sol de cada uma; agora cada vez mais cortado e contado. Eu passeio pelas avenidas da cidade vendo os últimos exemplares dessa raridade da engenharia civil. Conheço pessoas que são do tempo delas. E que como elas andam desconfiadas. Por que a modernidade despreza seu jeito e espaço. E para ambos a velhice vem servindo para por em cheque a firmeza de seu alicerce. A profundidade e a capacidade de suas raízes.
Agora olho de cima essas três casas. Elas repousam sóbrias sobre esse bairro abastado. Porém tenho certeza, se as casas mais se assemelhassem a bichos que a árvores, ergueriam seus corpos, e com patas descalças caminhariam. Caminhariam muito até encontrar seu sítio.

Rafael Alvarenga
Niterói, 17 de setembro de 2012

sábado, 15 de setembro de 2012

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Jogadores de xadrez

 

Quando me aproximei eles já disputavam. O tabuleiro armado. Amontanhado de peças simbólicas. Torres, cavalos, reis, rainhas, bispos e peões. Todos esculpidos em tocos de madeira.

Embora a ambos eu pudesse chamar de meninos um dos jogadores era mais moço. E contemplava o front silencioso. Desenhava as ações do exército branco. O outro se deixando sorrir liderava a marcha do exército preto.

Num princípio furioso os cavalos negros punham seus cascos avante. Com semelhante ímpeto, os peões avançavam pesadamente formando um escudo sólido. Na retaguarda a rainha preta aguardava o momento mais propício. Enquanto torres e bispos saltavam longe. Como mísseis modernos e teleguiados.

O exército branco encolhia-se. E seu líder mordia-se temeroso. Entretanto pensava. As possibilidades do ataque preto eram incríveis. À observação do massacre o líder menino sorriu mais. Desconcentrando-se em sua própria vaidade.

Deslembrou da retaguarda. Sorriu para quem o elogiava. E foi através de seu sorriso que o adversário encontrou um bispo esquecido ao canto esquerdo. Lançando-lhe as patadas de seu cavalo albino. As tijoladas de suas torres supinas. O ódio vingativo de sua rainha mortífera. A entrega kamikaze de seus peões obedientes. A maldição de seus bispos ambiciosos.

O menino tinha seu sorriso destronado. Sua alegria atolava na derrota. Seu rei, pomposo e imóvel, caía sem resistência. O cheque mate tem o poder da dor enraivecida.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 28 de agosto de 2012