quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Presente de aniversário

Presente de aniversário

Dali a dias a criança faria anos. A tia lhe comprara o presente com antecedência. E eu, o tio, gostara do agrado. Só não entendia como faríamos com o embrulho. Não que o sobrinho nos viesse vasculhar o baú, dando de cara com o que seria seu. Afinal, julgava eu, presentearíamos com antecedência. Demasiada antecedência.
Entretanto a tia não planejava assim. Disse-me que manteria o presente ali, na prateleira, até a data festiva. De imediato nada contrapus. Depois vi o brinquedo decompor-se em qualquer coisa sem alegria; como uma tábua de passar roupa; um castiçal; um escorredor de pratos.
O presente no alto da prateleira. Com medo de pular. Como o pássaro jovem que ainda não sabe voar. Tive pena. Pensei em contar tudo à criança. Inflamar-lhe. Um presente não se guarda por esperar. Um presente se compra e se dá.
Quando encontramos a criança balbuciei mudo sobre o conteúdo embrulhado em papel colorido. E a cada vez que a tia fazia menção a uma nova frase, uma nova palavra que fosse, eu arreganhava o rosto num sorriso prematuro. Mas, falava-se de tudo menos do presente.
E a criança a última a saber. A única a não saber. No descansar do quarto, depois do primeiro silêncio, antes dos sonhos falarem, supliquei: Pelo amor de Deus, dê logo esse presente! Desabafada ela adoçou: Sim. Amanhã mesmo. Nem eu aguento mais esperar.

Rafael Alvarenga
Niterói, 04 de novembro de 2012

sábado, 3 de novembro de 2012

Loucura congelada


Loucura congelada


Quanto mais nos trancam, tanto mais congelamos nossa loucura. Dentro de nós um Ártico oceano. Fora de nós um Antártico continente. E é inverno. Mas existe vida. Embora imobilizada sob os braços cristalinos do gelo.

Posso fechar os olhos. Afinal abri-los para paredes nuas e depiladas em nada excita. Bem poderia passar por aqui uma barata. Tal aquela que em tão profunda alucinação empurrou Clarice Lispector. Entretanto não há outro excesso senão o do asseamento.

Falta-me a mesa e a cadeira onde possa colocar-me e trabalhar. Que inveja dos homens que viveram em um quarto. E nele levantaram a tenda de uma casa inteira. Lembro-me do quadro onde Van Gogh representou seu quarto. Fosse o pintou ainda vivo e eu jamais lhe proporia por meu quarto num quadro. Pois tudo está fora dele. Até mesmo minha tristeza.

Falta-me coragem para declarar a dor que sinto diariamente nas costas. Mesmo assim, sorrindo, bato às portas apresentando-me esse escritor. Mas o chefe, sempre em reunião, não me pode receber. Trancam-me. E eu mal posso mostrar a crônica que acabei de escrever num guardanapo. Contenho-me. Agradeço. Sorrio. Congelo minha loucura.

Entra um vento por debaixo da porta. Não derruba nada. Por isso sobra. Depois morre duro. Igual. E inexpressivo tal qual a loucura que ainda não degelou.

 

 

Rafael Alvarenga

Niterói, 02 de novembro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Lá embaixo!


Certa liberdade


Certa liberdade

Vinham em três. À porta da escola dissolveu-se o grupo. As crianças penetraram por uma abertura na grade. Pularam para o interior dos pátios e salas. Foram zunindo e gritando. Numa cavalgada forte.

Em seguida correu o ferrolho. As chaves uniram-se a um canto da argola; balançando junto ao caminhar do inspetor.

Cá fora, a mãe. Aliviada. Sentou-se ao banco da praça. Sacou um cigarro amassado e acendeu-o. Fez pensando no que iria fazer. Tinha as próximas quatro horas da tarde. E devia fazer qualquer coisa, desde que esquecesse completamente as crianças.

Naquele momento deixava de ter filhos. Toda responsabilidade ficava agora com aqueles que estavam do lado de dentro das grades, ajuizava.

Levantou-se e caminhou. Quando se achou longe suficiente pensou em tomar um ônibus e ir à praia. Ou almoçar em um restaurante caro. Lembrou-se do cinema. Quanto tempo não ia ao cinema. Pensou também em procurar Amanda, sua prima, e declarar o quanto vivia bem, o quanto estava satisfeita com a vida. Poderia ler numa paz sensual um romance picante. Poderia suspirar pelo Passeio Público e paquerar. Porque agora era uma mulher solteira e sem filhos.

Poderia tudo que quisesse, mas tinha apenas quatro horas para escolher qual tudo faria.

As crianças estavam seguras. Ao longe se ouviam seus gritos escandalosos.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 31 de outubro de 2012

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Poesia em flor

Poesia em flor

Sem mais nem menos, o arbusto defronte minha janela floriu-se por completo. Espocou em flores cabeludas. A uma impressão inicial, parece até ter perdido todas as folhas. Pois quase não se admite mais verde nas órbitas de tronco e galhos.
Fica arredondada a altura do arbusto. Os pintassilgos se embrenham sob essa abóbada. E deliram num canto gargalhado. Canto de quem pousa no coração da catedral da natureza. Onde as telhas são pétalas arroxeadas. E do céu escorre uma beleza doce.
Nesse período o arbusto cresce. Senão em tamanho, certamente em cor. As flores de pernas abertas. Os estames arrebitados. O sexo das flores.
Os pintassilgos vêm e voltam. Sacodem o arbusto. Não sei se pelejam. Não se contam alegre piada. Não aprendi a entendê-los. É que em minha escola não há palmeiras onde cantem pintassilgos.
Começa a soprar o vento. As flores ondulam. Navegam em ondas evaporadas. Marcando sinais com seus movimentos. Acenando com seus lábios envernizados com néctar. Amarrados às raízes do arbusto por fios de clorofila.
Planta acesa. Kilowatts de flor; ilumina e atrai minha cegueira.
Mal posso esperar pela noite. Mal posso esperar pela insônia. Um arbusto florido não se apaga. Um arbusto florido é poesia; poesia em flor.

Rafael Alvarenga
Resende, 25 de outubro de 2012


domingo, 28 de outubro de 2012

Reencontro


Reencontro

Quanto tempo já faz. Lembro-me de segurá-la na mão. Não posso esquecer também do dia quando juntos saímos a lhe procurar um lugar. Claro, ela vinha crescendo. E nosso caso, em algum momento havia mesmo de terminar. Não foi fácil para mim. Eu era impávido. Contudo, por sorte, naquele dia choveu. E as lágrimas que me amoleciam esconderam-se entre os pingos do céu.

Depois, naturalmente, ela ganhou corpo. Chamou a atenção de passantes e cantantes. Sabia que alguns se aninhavam em seus braços firmes. Ao vento ela esvoaçava-se. Mas eu evitava passar próximo a seu perfume. Não sei o que me viria à cabeça caso encontrasse alguém trepado nela. Ou desrespeitosamente urinando a seus olhos.

Nunca lhe esquecera. Por isso, em virtude de minhas contas, sabia de suas épocas. E pelo tempo margeava-lhe a maturescência. E eu que mesmo apaixonado como sempre fora, nunca tivera a oportunidade de vê-la nua em flor. Paixão de menino talvez. Entretanto eu já era homem.

Resolvi procurá-la. Ela não mudara de endereço. Meu coração batia forte. Fiz o caminho mais longo. Talvez a fim de cansar-me a mim mesmo.

Quando cheguei ela estava só. Linda. Rechonchuda de frutos vermelhos. E de braços abertos como se me reconhecesse. Minha aceroleira! Quanto tempo desde o dia em que lhe plantei!

 

Rafael Alvarenga
Resende, 17 de outubro de 2012

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Por um pedaço de Pessoa

Por um pedaço de Pessoa

Ele lia um bruto volume de história do pensamento. Era mestre. Sentava-se em cátedra. E sua produção intelectual acompanhava códigos austeros. Exigia um silêncio sem esperança de vida. Bem como coibia sorrisos. É que aprender haveria sempre de doer.
As páginas que custosamente revolvia tinham o fino da seda. Sobre elas a carga de uma filosofia que apenas pudera ser abstrata. Fosse concreta e nenhum de nós a carregaríamos na cabeça ou nas mãos tal o chumbo sentido.
Chegou a menina. Poucos anos de adolescência. Toda atrevimento e distração. Sentou-se em frente dEle. Em mãos um Fernando Pessoa. Lia com os cantos da boca fundeados em sorrisos. Balançava com as rimas. Porém, ás vezes, punha os pés no chão tal a altura do balançar de um poema.
Após, balbuciava uma estrofe cantada ou exclamada! Ele não penetrava mais nas páginas de chumbo do livro de seda. O pensamento da história desligava seus neurotransmissores.
Invocada ela sacou o telefone. Ali era terminantemente proibido o uso desses aparelhos. Sorria e seus dentes ganhavam cada vez mais em tamanho. Digitava e olhava para o livro. Copiava a poesia, ele viu. Ela pôs o pé sobre a cadeira almofadada da biblioteca. Abusada! Em plena adolescência da vida lendo Fernando Pessoa e rindo e pisando na cátedra.
Ele não disse nada. Que maravilha devia ser receber, no meio da manhã, um pedaço de poesia do Pessoa. Ele não disse nada.

Rafael Alvarenga
Resende, 17 de outubro de 2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O pombo e o bêbado



O pombo e o bêbado
As lojas todas fechadas. E a rua em chão de areia. Em virtude do início das obras ditas de melhorias. O pombo lá, cosendo ninho com as unhas. Juntando grão de areia como fossem paetês. Mas no chão não se põem ovos. As corujas é que se aproveitam dos comentários sobre o exotismo místico de seu corpo. Acalentam seus embriões em buracos no chão. E fingem amaldiçoar quem se aproxima.
O pombo insistente. Acorujado no chão. Em frente à cortina de ferro arriada de uma loja de sapatos. Amanhã bem cedo um quarenta e dois bico largo lhe chutará a cloaca. Mocacins marrons morderão a areia seca. Leves sandálias femininas de números pequenos e delicados lhes pisariam os ovos.
Talvez estivesse à beira da morte. Por isso pretendesse procriar a qualquer custo. E se os filhotes não vingassem que teria a ver com isso? Não podia era morrer antes mesmo de reproduzir. Pois era essa a principal morte: não deixar vida.
Veio um bêbado. Entrou pela rua. No desencontro das pernas deu-se com o pombo. Como sentia-se no direito de qualquer coisa, até de ser feliz sem motivo, perguntou a ave o que fazia ali. Não obteve resposta. Entretanto continuou perguntando e respondendo. Com uma voz enrolada. Uma preguiça pesada. Afundou-se na areia. E roncou tudo que o pombo não arrulhava.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 15 de outubro de 2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Desjejum e pássaros


Desjejum e pássaros

Escrevo sobre os farelos do desjejum. Ajeito uma espécie de canto. O qual desejo que assobie como poesia. Não uso caneta ou lápis. Trabalho com teclas. E lanço mão de três dedos em cada ponta de braço. É que sou meio apassarinhado.
Os pássaros estão à porta. Reclamam sem decoro essas cambaxirras! Choram lágrimas de crocodilo esses sabiás! Quem os ouve crê que lhes cometi alguma violência. Os beija-flores deitam os pés no chão. Entretanto, de forma alguma desligam as hélices. Seu corpo se move e muda de cor e forma. São hologramas alados. Para cada fração de movimento novidades relativas à cor. Em cada pena cabe o inteiro de um desenho exclusivo. Mas o ângulo necessário para vê-lo é obtuso. Ali está o segredo do bicho. O beija-flor gira em alta rotação. E na roleta russa de sua própria vida duvida de quem seja capaz de sentir a existência numa fração de segundos.
Tirei a toalha da mesa. Dobrei-a como se carregasse uma trouxa. Pisei no chão caraquento da calçada. Esperei o vento. Então soltei duas das pontas do tecido e esvoacei minha bandeira branca. Os farelos do desjejum mergulharam no frio sem sol da manhã. A infantaria dos pássaros avançou muda. Mesmo depois de tantas manhãs não me confiavam a ponto de crer-me amigo; de crer-me sempre fiel e apreciador.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 13 de outubro de 2012

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Caroço de laranja


Caroço de laranja

Pela janela cuspo caroços de laranja. Vão a terra umedecidos pela saliva membranosa. Não é apropriado pô-los no lixo. Pois, são vida, não lixo. São outras laranjeiras em flores e frutos.

Entretanto aqui se juntaram algumas casas. E como para o consenso vila é coisa antiquada chamam de condomínio. Esse rapaz de azul é o jardineiro. Segue as normas. É bom funcionário. Poda tudo. Varre tudo. Limpa tudo. Antes que eu acorde ele já retirou os caroços de laranja do canteiro logo abaixo de minha janela. Não o pergunto absolutamente nada sobre isso. Sei; o condomínio não permite aos moradores possuir uma laranjeira à janela. Afinal, argumentaria o síndico, se cada morador resolvesse plantar uma árvore sob a janela como ficaríamos? Aqui laranjeira, ali aceroleira, acolá pitangueira. Perder-se-ia o padrão estético do condomínio.

Em minhas mãos vai, mordida a mordida, diminuindo-se as frações da laranja. Pelas nervuras vegetais escorrem lágrimas amarelas. Todavia não adianta. Não é a graça das folhas secas na calçada; não são as flores perfumadas; não são os pássaros cantando em algazarra pela manhã; não são as sombras ou as frutas que lhes incomoda. É que as regras não permitem que se mude o padrão estético do condomínio.

Resta um último caroço. Cuspo-o na palma da mão. Em seguida lanço-o. Talvez, para além dos muros, haja permissão estética para brotar.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 08 de outubro de 2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Vida d'outro


Vida d’outro


Da vida que tem, cada um é quem devia saber. Mas não sabe. É que a vida alheia é mais fácil. Não de ser vivida, sim de ser sabida. Aí é tanto formato de opinião, com tantos lados e ângulos que a geometria dos poliedros nem espia. Então a ciência passa longe. E é a gente toda quem vai pensando saber.
E a vida tem real; tem ilusão. De minha janela vejo o homem que trabalha na torre desativada. Antes cuspia fumaça. Dando sinal da vitalidade da fábrica. Agora o homem pinta de vermelho cada tijolinho morto. É a vida dele. Vai subindo pela corda. Um balde de esmalte à mão. Trata a chaminé como a manicure da unha. É a vida dele. Ele sobe e desce procurando defeito no obelisco circular. Todo dia. É essa sua vida. E os outros olham e falam. Falam de tudo. Porque é exótica, perigosa, insignificante. Veem de tudo. O salário miserável, o esforço brutal, a iminência da queda, a maravilha da vista privilegiada, a adrenalina borbulhante da altura, a coragem altiva, o suor luminoso.
Da vida que tem, cada um é quem devia saber. Mas não sabe. É que a vida alheia é mais fácil. Não de ser vivida, sim de ser sabida. Quanta cor de opinião para esses ouvidos monocromáticos. E ninguém fala branco; ninguém fala preto.


Rafael Alvarenga
Resende, 08 de outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Cão vagabundo


Cão vagabundo

Já crescida a manhã corria pelas ruas. Com um calor grosso. Um sol seco e poeirento.
Amarelo e transeunte era o cão. As unhas compridas e encardidas. O focinho velho. Tão metido já estivera em cercas e lixeiras. Seu uivo agudo é que era frio. Porque tudo quanto é agudo é frio.
Nos olhos aguados uma profundidade oceânica. No olhar escuro um vazio abissal. Desses onde até duvidamos haver alguma coisa viva, no entanto onde não nos atrevemos a mergulhar. Suportavam seus quartos as duas pilastras finas das pernas traseiras.
Às tantas da manhã correu um vento. Até então estava escondido no silêncio das folhas dos abricós. Antes que escorregasse no ar o cão deu inicio ao trote vagabundo.
As orelhas dobradas em si mesmas. Escondendo o labirinto por onde só o som conhece entrada e saída. A cauda enforcada. Sem função vital. Pronta a ser enterrada e esquecida.
E o cão, já disse, vagabundo. Leva sua tristeza magra e incorporada. Esconde na língua arranhada o sal do seu suor. Procura entre o aqui e o acolá a doçura de uma sobra, o refrescar de uma poça.
O amanhã lhe está sempre muito próximo. Entretanto como não tem pretensão de prevê-lo, vaga pelo agora. E abunda-se do que tiver.

Rafael Alvarenga
Resende, 06 de setembro de 2012

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Casa Fechada


Casa fechada

Fechei a porta e as cortinas. Ambas estão alagadas por uma cor semelhante a das paredes. Sinto-me legitimamente fechado. Tudo é constante aos olhos.

O ventilador dorme com os braços abertos. Esparrama-se de cabeça para baixo. Eletrodoméstico da espécie dos morcegos. E as prateleiras estacionam-se como vagões num pátio de manobras. Sua carga um bricabraque erguido por cantoneiras negras e insensíveis. Nosso calendário marca dia trinta. É daqueles cujas folhas, com o passar dos dias, giram sobre uma espiral para esconderem-se no atrás. Cada dia uma folha. Girando sobre seu próprio eixo como faz a terra. Amanhã serão duas folhas girando. Esse mês, dia trinta e um não nascerá. O que é motivo suficiente para me fazer supersticioso.

Há dois pregos enfiados na parede. Suas cabeças são negras e relutantes. Seus corpos fossilizados na argamassa anabolizada. Se tiverem alguma vida, direi que eles passam ali uma vida inteira.

Abraça o interruptor uma nuvem de sujeira de mãos. Do outro lado a marca de um armário que já viveu aqui. E traços a lápis de uma caligrafia iniciante. A antiguidade da casa viu crianças; sabe de segredos. E nunca esteve tão silenciosa. Porque a noite eu fico sozinho. E cubro as janelas com as cortinas. Fica uma impressão de que a casa dorme. Assim como dorme um carro quando coberto com uma capa que lhe garante formato.

A diferença é que a capa da casa é quem mora dentro dela.

 

Rafael Alvarenga

Niterói, 30 de setembro de 2012

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Imagem escrita


Chão de apartamento

Hoje meu chão é de apartamento. E essa noite é intimamente preta. Ao redor, aqui e acolá, alguma janela em luz. Uma luminância esvaecida. Porosa. Derretendo-se na inclinação do facho. Nada se desnuda.

As janelas assentam-se na alvenaria infinita da pedra só que é a escuridão. Essas janelas, pobres gárgulas desamparadas; fazem bem em tentar dormir, já que é noite, já que tudo ignoram.

No meu chão de apartamento as janelas de vidro são tão dilatadas que poderia referir-me a elas como paredes de vidro. E mais que isso, poderia me aliviar pensando que se estivesse a viver no chão mesmo não usufruiria do exotismo de paredes de vidro.

Aos poucos vou consolando-me. É que pisar longe do chão me dá a sensação de animal na jaula.

Acaba de nascer mais uma janela. Embora eu tenha certeza que todos estejam morrendo enquanto dormem. Tem uma luz azul. Mais prolongada. Se ela apresentasse fôlego para correr um pouco mais faria curvas. Entretanto não está bem alimentada. Por isso fica ali, no peitoral de mármore, mordiscando migalhas de escuridão. Eu não a incomodo. Não tenho interesse algum em ser iluminado.

Quero apenas sentar na noite. E dar a luz a crônica do dia seguinte.

 

Rafael Alvarenga

Niterói, 28 de setembro de 2012

Solidão

A solidão não tem garganta. Nem cordas vocais. A solidão não fala. A solidão não tem dedos nem unhas. A solidão não me agarra. A solidão não tem pernas e pés. A solidão não anda ao meu lado. A solidão não tem ovário. Nem espermatozoides. A solidão não se reproduz.
A solidão não tem proteínas e vitaminas. Nem lipídeos e sais minerais. A solidão não alimenta. A solidão não tem nervo ciático. Nem medula espinhal. A solidão não sente. A solidão não tem evaporação. Nem formação de nuvens. A solidão não se precipita.
A solidão não tem giárdias. Nem lombrigas ou bactérias. A solidão não adoece. A solidão não tem adição. Nem multiplicação. A solidão não numera. A solidão não tem dias. Nem horas ou instantes. A solidão não tem tempo.
A solidão não é uma coisa. Nem tem uma coisa. A solidão é o nome do que é espaço vazio. Por isso, é através da solidão que vemos tudo que passa. É através da solidão que inventamos tudo que pode passar. Porque quando não há solidão, há algo. Uma existência a nos distrair de todo o resto.
Mas a solidão não é exatamente fonte.  A solidão não tem chafariz. Nem anjos e harpas. A solidão não tem coração.

Rafael Alvarenga
Resende, 26 de setembro de 2012

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Meu vagar

Nessas madrugadas saio para dentro de mim. Vagueio por estradas de chão arterial. Piso nesse vermelho batido. Acendo uma poeira ácida. São horas cheias da madrugada. Dos campanários de minhas torres torcidas soa certa dor. Vou à margem de duodenos compridos. Hesito em cruzamentos nevrálgicos. Não há sinal. Dentro de mim é uma cidade planejada. Obra de um futuro antigo. Criação simbiótica de movimentos.
Avisto viadutos, pontes, tuneis. E a fluidez de mim me apavora. Aqui está tudo. Os fantasmas vagueiam. E a santificação tem cor e forma.
Vou aos becos cheios de pés descalços. Há vapores em alguma junta. E linhas de todo tipo. Talvez nenhuma delas seja retilínea. Tenho trópicos dentro de mim. Meu ocidente emagreceu. Meu oriente enegreceu. O sol não está no meu umbigo. Dentro de mim não tenho hora. Ando por minhas periferias descarnadas e pelancudas. Meu nariz entende os verdes biliáticos. Meus olhos tateiam a molenguice de meus bairros de trabalhadores.
Chego a uma praça. Ampla. Com uma bela fonte de água suja. Nela lavo minhas orelhas. E tudo vai ficando cristalino e subnutrido. Logo a frente um bem feito sobrado. Dentro dele um coração bate. A janela está aberta. A toalha branca esvoaçante pode ser o sinal. Ao lado a aorta. Manjericão e estômago vazio.
Pego uma ventania pulmonar. Chovem goles d’água. Procuro abrigo no quente de uma axila. Sou andejo em mim, por dentro e por fora. Encosto e cochilo o sono d’agora.

Rafael Alvarenga
Resende, 25 de setembro de 2012    

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Imagem escrita


Pelo asfalto

Esse asfalto é como uma língua comprida. Ligando aqui e lá. Sabe de quem vai e de quem vem. Mas como endureceu de baixo de nosso passar cristaliza alheios segredos. Mas tudo tem um ponto de amolecimento. E há uma quentura de sol que empasta o negrume do piche. Ficam, em marcas, os redondos dos pneus. E suas dentições tão variadas. Lembram-me marcas de mordidas de predadores. Pois desfazem o couro da terra.
As rodas empurram a terra para trás a fim de seguirem para frente. No fim todos andam cada qual para onde vai.
Não há controvérsias, a velhice chega a tudo. O tempo é malha fina, diariamente remendada. Ao tempo em que não pode mais morder o chão o pneu é encostado a um muro sujo. É uma gengiva negra e banguela. Seus dentes todos apagados. E a nevralgia dos arames que malham o interior da borracha a saltar brilhante.
Mais um pouco adiante chove. O asfalto não tem poro. É uma crosta enrugada. Nada afeita a penetrações liquescentes. E por mais que o céu chore por horas a fio o asfalto não arreda. A água empoça. E depois escorre até uma vala.
No corpo negro do asfalto linhas e listras; traços e olhos de gato alumiando à noite a boca da curva. Abaixo os faróis e as papilas concretadas do asfalto sentem o gosto da luz.

Rafael alvarenga
Resende, 24 de setembro de 2012 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Imagem Escrita

Três casas

Sobraram três casas. E como de propósito, nelas tudo era de antes. Nas garagens fuscas; nos telhados antenas como espinhas de peixes; no entorno muros baixos; nos fundos um quintal cheio de guardados; na varanda uma samambaia despenteada.
De resto os prédios. Arrogantes e abusados. Dando as costas largas e lisas. Olhando o mar por cima. Mas desprovidos de uma cabeleira de telhas. Qual pudesse ser alisada pela brisa marinha. As casas riam. Pois os prédios moravam na beira mar, entretanto viviam quadrados. Usavam terno e gravata de concreto. E que adiantava sua altura grande se mesmo o gavião solitário que planava esbelto vinha pousar no telhado baixo e descaído das casas.
O problema era o quinhão de sol de cada uma; agora cada vez mais cortado e contado. Eu passeio pelas avenidas da cidade vendo os últimos exemplares dessa raridade da engenharia civil. Conheço pessoas que são do tempo delas. E que como elas andam desconfiadas. Por que a modernidade despreza seu jeito e espaço. E para ambos a velhice vem servindo para por em cheque a firmeza de seu alicerce. A profundidade e a capacidade de suas raízes.
Agora olho de cima essas três casas. Elas repousam sóbrias sobre esse bairro abastado. Porém tenho certeza, se as casas mais se assemelhassem a bichos que a árvores, ergueriam seus corpos, e com patas descalças caminhariam. Caminhariam muito até encontrar seu sítio.

Rafael Alvarenga
Niterói, 17 de setembro de 2012

sábado, 15 de setembro de 2012

Imagem escrita


Jogadores de xadrez

 

Quando me aproximei eles já disputavam. O tabuleiro armado. Amontanhado de peças simbólicas. Torres, cavalos, reis, rainhas, bispos e peões. Todos esculpidos em tocos de madeira.

Embora a ambos eu pudesse chamar de meninos um dos jogadores era mais moço. E contemplava o front silencioso. Desenhava as ações do exército branco. O outro se deixando sorrir liderava a marcha do exército preto.

Num princípio furioso os cavalos negros punham seus cascos avante. Com semelhante ímpeto, os peões avançavam pesadamente formando um escudo sólido. Na retaguarda a rainha preta aguardava o momento mais propício. Enquanto torres e bispos saltavam longe. Como mísseis modernos e teleguiados.

O exército branco encolhia-se. E seu líder mordia-se temeroso. Entretanto pensava. As possibilidades do ataque preto eram incríveis. À observação do massacre o líder menino sorriu mais. Desconcentrando-se em sua própria vaidade.

Deslembrou da retaguarda. Sorriu para quem o elogiava. E foi através de seu sorriso que o adversário encontrou um bispo esquecido ao canto esquerdo. Lançando-lhe as patadas de seu cavalo albino. As tijoladas de suas torres supinas. O ódio vingativo de sua rainha mortífera. A entrega kamikaze de seus peões obedientes. A maldição de seus bispos ambiciosos.

O menino tinha seu sorriso destronado. Sua alegria atolava na derrota. Seu rei, pomposo e imóvel, caía sem resistência. O cheque mate tem o poder da dor enraivecida.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 28 de agosto de 2012